Crônica Urbana: Hoje Passou

O menino desce a rua tentando se entender ali. Pés descalços sentem o calor das calçadas, o dorso descoberto e a mão que desliza nas paredes marcadas por um tipo diferente de chuva. A noite clareou e não eram relâmpagos. Estrondos que não eram trovões… A chuva de bala ficou presa para sempre ali, no caminho que faria todos os dias da casa para a escola, dentro de lembranças e num concreto que esfarelava nos seus dedos.

Era a forma de sentir na pele a violência. Batendo na porta, ameaçando derrubar paredes. A invasão de um lar, mãos nos ouvidos e coração nas mãos. Toque de recolher, o abraço apertado de que vai ficar tudo bem, todo mundo deitado (agora!). O piso é frio e o medo sufoca a angustia de estar de braços atados ao acaso que é manter-se vivo sob forte tiroteio.

O alívio vem no silêncio das armas. Um minuto. Depois mais dez. Acho que acabou. Uma hora. Já podem se levantar. O susto, o temor e a ansiedade terão de ser, bravamente, deixados de lado. O futuro depende disso… De sair e se expor, de colocar-se em movimento e percorrer caminhos marcados pela violência.

É aprender a camuflar os sentimentos, a negar o quanto sente por todas estas marcas e respirar aliviado porque foi e voltou em paz, vivo. Que os seus irmãos mais novos estão em casa e também passam bem. Que mamãe logo chega do trabalho com uma sacola de compras e começa a preparar o jantar. E que papai também não demora a entrar assoviando como faz todos os dias. Hoje passou.

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