Somos melhores do que novos termos

Voltamos à estaca zero, ao início de tudo. Segunda-feira, mais uma semana. Meia noite e um. Primeiro de janeiro ou o dia logo após o seu aniversário. Recontamos do começo, nos preparamos para o novo, mas continuamos envelhecendo acreditando que estamos diferentes e que podemos iniciar um novo ciclo. O tempo cruel não para. O esquecimento é uma dádiva; e uma arma.

Cunhamos novas expressões que melhor descrevam quem somos, onde estamos e o que vivemos. Novos termos para antigos problemas. A solução na linguagem, em palavras, dentro do discurso, para explicar, racionalizar ou delimitar pessoas, atitudes e comportamentos. A humanidade nua e crua em sua perversidade, em expressões que já são tão nossas que sequer nos damos conta de que um dia vivemos sem elas. A cultura do estupro, da violência aos LGBTTIS (esqueça GLS e LGBT!) e a transfobia, para citar três dos mais recentes.

Escolhemos símbolos, nos agarramos a mártires, queremos personagens que humanizem e nos insiram no problema. Poderia ser comigo, com minha mãe ou com minha filha. Experimentamos chorar a dor alheia… Na velocidade da espetacularização do acontecido, o show da vida, dos horrores que nos é oferecido, consumido, mal digerido até que somos tomados de assalto por outra barbárie. O tempo cruel não para. Os velhos vícios, os antigos traumas, os conhecidos problemas continuam lá, aqui, em todo lugar, mas a gente escolhe seguir em frente. Porque poderia, mas não foi contigo, com sua mãe e com sua filha.

Novas expressões são uma excelente forma de provocar o circo, de trazer a massa junto à manifestação. Hashtags empolgam, campanhas viralizam e pulverizam a discussão. A propaganda está feita… para o bem e para o mal; para as pessoas “de bem” e também para os misóginos e homofóbicos só para continuar nos exemplos que eu trouxe acima.

Não dá para recomeçar como se nada tivesse acontecido, não dá para ignorar o que foi feito e o que ainda nem suspeitamos, mas iremos assistir horrorizados a qualquer momento. Continuamos coletivamente estuprados, vítimas de preconceitos algozes que contaminam as relações mais casuais de nosso entorno.  As vítimas estão entre nós, ao alcance das palavras, das novas expressões criadas. Não foi só no Piauí ou no Rio de Janeiro; o problema não acabou e palavras não bastam.

Precisamos olhar para dentro de nós mesmos e encarar o fato de que enquanto agirmos com pequenas doses de maldade, não somaremos para uma sociedade benévola. Não dá para sermos tão seletivos com o que nos sensibiliza também. Tudo importa, do morador de rua à pessoa mais rica que você conhece, da pessoa que você mais ama àquela pobre desconhecida. Sem reflexão e mudança de atitude, voltamos a estaca zero, ao início de tudo. O dia seguinte não precisa ser uma ressaca incurável que fingimos sentir.

3 comentários em “Somos melhores do que novos termos

  • Soco na boca do estômago, né? Nós somos a mudança que queremos ver no mundo e, no entanto, escolhemos não mudar. Constantemente reclamando, claro, que nada muda..

    Confesso que a capacidade de ser cruel, dos seres humanos, tem me assustado muito.

    Vc e essa sua escrita leve, suave, intensa, forte.. Adoro!

    Bjo

  • Novas expressões pra quem?
    Pra quem ta tomando na cara todo dia do patriarcado é que não é.
    São expressões que ganham o holofote porque dessas vez foi dificil esconder 33.

    Eu vejo que você começou o ano de 2016 muito engajado. E eu acho isso ótimo. Mas você começou a perceber mais claramente o que ja rola anos, só agora.
    De dentro da sua redoma de classe média alta era difícil entender algumas coisas, porque quem nunca precisou pegar um busão lotado todo fucking dia, ter rotina dobrada entre estudar e trabalhar pra pagar as contas, e não dar conta, ou se tinha um dinheirinho do lanche da tarde, que não precisou comer em bandejão popular (não que nunca tenha ido, mas entre ir porque quer e precisar tem um caminho muito longo), só aprende na marra ou porque tinha algo adormecido precisando ser acordado.

    E eu te admiro mais por isso.

    é bom sair do conforto do sofá, é bom sair da sua zona de conforto, e ir confortar o outro.

    • Talvez tenha começado 2016 mais engajado como você bem observa, mas talvez seja apenas o movimento de voltar a escrever neste espaço, o deixar registrado no papel (ainda que online) um pouco do que penso. Não penso porém que seja de hoje, embora antes preferisse as conversas entre quatro paredes e de portas fechadas. E também não acho que irá parar por aqui. Espero que a vida continue a me ensinar a ser um homem melhor. Abraços e obrigado pela visita!

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