RG

Foi um olhar cruzado, um bom dia meio tímido trocado quando ele segurou a porta do elevador para que ela entrasse. Três andares em silêncio, quase a ponto de ouvir o que cada um pensava, queria, desejava. Dos dois lados a curiosidade, convertida em interesse.

De tanto observá-la indo e vindo, soube de quem se tratava. Das coisas mais bobas – cores favoritas, horários, marca de shampoo (!) – até, por exemplo, o jeito como se despedia dos porteiros, o tempo que levava  para abrir e entrar no carro, como parecia uma malabarista dando conta de bolsa, todos aqueles livros, a chave do carro… Sem perder o charme!  E o mais louco: ele sabia exatamente quantos passos ela dava até chegar no carro quando estacionava do lado de fora.

Não era um craque de leitura labial, mas veja só: outro dia conseguiu adivinhar a música que ela cantava e não demorou para localizar a estação do rádio que tocava; aquele passou a ser um canal entre os dois, o elo de ligação embalado a sucessos pop de um romance platônico.

Tiveram também sábados que testaram sua paciência. Talvez de um happy hour para uma balada com amigas. Teria beijado outro? Eram noites em claro, sem pregar os olhos esperando apenas pelo barulho característico de um certo motor. Chegava sempre radiante, vez ou outra levemente bêbada, “bom dia, seu Durval”, que entregava o jornal não escondendo o sorriso de encantamento diante de tamanha beleza. Que sorte a dele poder ter o que falar com ela!

O que ele não desconfiava é que ela sabia de tudo. E adorava aquilo. E, ao seu modo, também alimentava e vivia aquela forma de amar. Era tudo tão perfeito, idealizado nos mínimos detalhes, que segurava-se para não se revelar para ele.

Da primeira vez, no elevador, até o próximo contato foram exatas setenta e três horas, quatorze minutos e uns vinte e cinco segundos. Aquilo deveria ser um sinal. Ela, entendida dos segredos guardados nos números, duvidava da mera casualidade da somatória do tempo que separava o que seria amor à primeira vista do segundo contato ter dado o número do amor para uma vida toda. Refez as contas: 73 horas + 14 minutos + 25 segundos = 112, ou 1 com mais 1 com mais 2, QUATRO. Era ele!

Ela, direta, foi logo perguntando para o Durval, para a Silvia,  para o Zenildo e quem mais cruzasse o seu caminho, quem era o morador do apartamento que vivia na janela, na sacada, parado ali no portão. Aquele de cabelos meio assim, mais ou menos da minha altura, isso… ele mesmo. Ah, ótimo. Obrigada.

Ela sabia que ele amava pão de queijo. Escondida atrás das cortinas, viu o dia em que ele discutiu com um motorista e, nervoso, coçou o nariz. Às quartas ou domingos, já esperava pelo grito apaixonado na hora do gol ou quando a coisa não ia tão bem, um insulto ao juiz filho da puuuuuuuta!

O que todos da portaria já sabiam, era que eles buscavam pelos seus nomes nas listas de condôminos. Donos de informações tão pessoais – pra quê precisariam do número do RG??? – faltava apenas que soubessem que eram donos do coração um do outro. Se colocassem tudo para fora, se dessem voz ao amor que sentiam, seriam elogios capazes deixá-los um pouco envergonhados, mas com o peito explodindo de realização. Amor correspondido.

E ainda que ele um dia duvidasse que merecia aquele amor, bastaria olhar pela janela para ver quem chegou na forma de um presente preparada apenas para ele desembrulhar.

* Conto livremente inspirado na música RG, de Luan Santana e Anitta.

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